Do blog do jornalista Zema Ribeiro
Filho de Durval Cunha Santos e Josefina Medeiros, Jonaval Medeiros da Cunha Santos nasceu em Codó/MA, em 10 de novembro de 1952 e faleceu hoje (20), vitimado por insuficiência respiratória em decorrência de um edema pulmonar, em São Luís, cidade que adotou e por que foi adotado desde antes de seu primeiro aniversário. Era irmão da cantora Didã.
Jornalista, entre poemas e contos publicou livros sob os pseudônimos Cunha Santos Filho e J. M. Cunha Santos: “Meu calendário em pedaços” (1978), “A madrugada dos alcoólatras” (s/d), “Pesadelo” (1993), “Paquito, o anjo doido” (s/d) e “Vozes do hospício” (2008), para citar alguns.
Neste último, dedicou-me o soneto “Motel”, um dos poucos poemas que sei dizer de cabeça, originalmente publicado n“A madrugada dos alcoólatras”, que recitei em muitas noites, em sua companhia ou fazendo sua fama ir além de sua presença: “O mênstruo da aurora em tom vermelho/ repete-me abatido na vidraça/ minha imagem em dó, ré, mi, coalha no espelho/ o sol, lavando o rosto, vê e passa/ É a manhã, rebento do meu sono, afoito/ me mudo para a lâmpada que acesa/ crava minha sombra sobre a mesa/ caneta e eu, poema, eterno coito/ Saudades dela em mim como estrias/ na pele – e como é duro removê-las/ devassos, nós dormimos quando é dia/ porque às noites, como cães lassos de orgia,/ se ela faz suruba com as estrelas/ eu vivo em coito anal com a poesia”.
Dividi muitas mesas e noites com Cunha Santos e pouparei os poucos mas fiéis leitores de histórias que poderiam soar apologia ao alcoolismo. Ele tinha consciência de sua condição e afirmava na terceira capa de “A madrugada dos alcoólatras” que o livro “não tem outra pretensão que não a de tentar descrever, através da poesia, pelo menos uma parte do sofrimento de que são acometidos todos eles”.
Recordo com especial carinho uma noite de sexta-feira que pariu o sábado em que amanhecemos tomando café numa padaria na Rua de São Pantaleão, próximo de onde ele então morava, e dali, com a mesma roupa de ontem, seguimos para assistir uma palestra do brilhante Agostinho Ramalho Marques Neto, que fora seu professor no curso (não concluído) de Direito, na Universidade Federal do Maranhão.
Na orelha de “Odisseia dos pivetes”, o jornalista e ex-deputado Luiz Pedro, falecido em junho passado, escreveu: “Cunha é um dos Santos de minha devoção”. Não exagerava. Além de poeta, foi um dos maiores cronistas políticos que o Maranhão conheceu.
Figura extremamente humana, era capaz de passar a noite distribuindo esmolas a quantos pedintes encostassem na mesa, deixando a conta na pendura – o fiado nas quitandas e bares ou a cumplicidade dos “colegas de copo e de cruz” invariavelmente garantiam-lhe a solidariedade.
Era um homem de esquerda, o que ninguém podia negar, combativo com a arma que tinha: a palavra. Se para muitos poetas e jornalistas o espectro ideológico deve ser omitido em nome de uma inalcançável, portanto falsa, imparcialidade, Cunha Santos nunca deixou de dizer de que lado estava, fosse escrevendo poemas em livros, fosse escrevendo textos em jornais. Combateu com igual fervor, entre a juventude e a melhor idade, a ditadura militar de 1964 e o governo genocida de Jair Bolsonaro – no que também irmanamo-nos: se uma CPI tem medo de dar às coisas o nome que as coisas têm, nós não.
Ia às lágrimas com facilidade, fosse por um poema, uma música, a situação do país, “comovido como o diabo”, como cravou outro poeta de sua predileção, exatamente como o personagem que dá título a um de seus poemas mais conhecidos, “As lágrimas de Seu Nelson”: Seu Nelson chorava todas as manhãs/ não porque estivesse velho ou triste/ não porque lhe deprimisse estar no mundo/ Seu Nelson chorava todas as tardes/ não porque sentisse dor ou soubesse de saudades/ não porque lhe deprimisse não ter muito aonde ir/ Seu Nelson chorava todas as noites/ não porque fosse criança ou tivesse medo do escuro/ não porque lhe restasse na vida um único e antigo amor/ Seu Nelson chorava todas as manhãs/ porque tinha certeza de que jamais/ haveria outra manhã igual àquela/ Seu Nelson chorava todas as tardes/ porque cedo ou tarde todas as tardes acabam/ Seu Nelson chorava todas as noites/ porque sabia que as estrelas/ se repetiriam em outras noites,/ naquela noite nunca mais/ e que sua madrugada só duraria/ até a hora de chorar mais uma vez”.
Talvez Seu Nelson e todos nós choremos por sabermos, agora, que nunca mais Cunha Santos escreverá outro poema, outra crônica. Resta a nós a saudade e relê-lo.